Hoje as coisas mudaram um pouquinho em casa. Mindlin começou a sentir a perda da visão e passou a contar com a ajuda de suas bibliotecárias, ou, como diz, suas “três graças”: Rosana Gonçalves, Cristina Antunes e Elisa Nazarian.
(José Saramago e Mindlin)
São elas as responsáveis pela organização dos livros e do acervo do casal. E lhe fazem a leitura em voz alta dos livros. O da vez é o romance As Intermitências da Morte, do português José Saramago, amigo de Mindlin.
Os livros foram os responsáveis por várias de suas amizades. Tornou-se amigo, por exemplo, do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Passeando pela biblioteca, Mindlin aponta uma prateleira mais baixa. “Aqui é Drummond”, diz, retirando um exemplar de Corpo. Abre a primeira página e lá está:
“Procuro no dicionário, falta rima para o corpo. Não é nada extraordinário. Sua rima é outro corpo.
"Ao querido amigo José Mindlin, um abraço afetuoso, do Drummond”.
(João Guimarães Rosa, autor de Grande Sertão: Veredas)
Foi ainda amigo de João Guimarães Rosa (1908-1967), de quem guarda, com todo cuidado e orgulho que possa existir neste mundo, o original de Grande Sertão: Veredas, um calhamaço datilografado e corrigido a mão.
(Mindlin com a versão original de Grande Sertão: Veredas)
Outra preciosidade: um original de Graciliano Ramos (1892-1953). “Ele revisava apenas as provas”, diz Mindlin, mostrando a primeira delas de um certo livro de nome estranho: O Mundo Coberto de Pennas.
(Original de Vidas Secas, manuscrito pertencente ao acervo de Mindlin)
O título, no entanto, está riscado, corrigido num golpe certeiro de caneta preta. Abaixo dele está rabiscada a correção: Vidas Secas, publicado pela primeira vez em 1938 e hoje um clássico da literatura brasileira.
Os exemplos citados seriam o ápice da paixão de Mindlin, que começa quando lê os livros em edições comuns. Depois, procura por outras obras do mesmo autor, até ler sua obra completa.
Aí, então, muitas vezes em conversas, percebe que existem outras edições, do mesmo autor, porém mais bem impressas, às vezes fartamente ilustradas.
“O gosto pelo conteúdo se combina, assim, ao gosto pelo corpo do livro: sua beleza, sua raridade, elementos que reforçam o desejo de conhecimento”, definiu o crítico Antonio Candido, confrade de Mindlin, no prefácio de Não Faço nada sem Alegria – A Biblioteca Indisciplinada de Guita e José Mindlin.
Erguida graças à paixão, a coleção de Mindlin ganhou proporções não apenas gigantes, mas ainda bem valiosas. Dentre elas,o mais antigo livro data de antes da chegada dos europeus a estas terras. Trata-se da primeira edição ilustrada dos Sonetos, de Petrarca, impressa em 1488.
(Sonetos, de Petrarca, impressa em 1488)
Há ainda um manuscrito com orações datado do século 15. E a primeiríssima edição dos Lusíadas (1572), de Camões.
(Edição dos Lusíadas de 1572)
Algumas das obras raras foram adquiridas em sagas que mostram como a vida de José Mindlin se mistura à da sua biblioteca. Como a vez em que se meteu a vender publicações raras, na livraria que montou no centro de São Paulo, A Pathernon.
(Site em homengem à Mindlin onde a Pathernon é digital)
Na década de 1940, ele e um amigo receberam um investimento para montar o negócio. Seguiram então para uma Europa devastada em busca de livros. O problema, conta Mindlin, era o momento em que chegavam os compradores.“Eu dizia para eles que se um dia quisessem vender os livros, que falasse, comigo”. Foi assim que a primeira edição completa dos ensaios, de Montaigne (1588), voltou a suas mãos.
Como nem só de livros vive o homem, Mindlin tornou-se empresário.
(Logo de uma das empresas mais antigas do Brasil)
Em 1949 ele fundou, com alguns amigos, a Metal Leve, uma potência na fabricação de autopeças. Para ele, o que importa foi o papel social que sua empresa conseguiu exercer: “Ela tinha obrigações culturais que não poderiam ser ignoradas”, diz.
Foi assim que a empresa começou a patrocinar edições fac-símiles de documentos sobre a história da literatura brasileira. Na companhia de sua filha Diana, Mindlin cuidou especialmente do aspecto gráfico das obras, com a intenção de manter as reproduções bem próximas das originais.
(Uma iniciativa brasileira em liberar gratuitamente a literatura, história e oportunidades de aprendizado aos internautas. Aqui, Mindlin usou sua influência para ceder títulos ao público)
Ressurgiram publicações como A Revista, originalmente editada por Carlos Drummond de Andrade, e a Revista de Antropogafia, um dos mais importantes documentos da história do modernismo brasileiro.
Loucura Mansa
Dono de uma alegria que sempre levou vida afora e de um humor implacável, “graças a Deus, eu sou ateu”, José Mindlin agora se prepara para ver sair do seu quintal sua árvore mais frondosa, a biblioteca.
(Última morada dos amados livros do maior bibliófilo brasileiro)
Numa decisão da família, a parte dedicada ao Brasil da coleção (mais da metade dos livros) foi doada à Universidade de São Paulo (USP), num projeto acalentado há pelo menos 20 anos.“O valor da biblioteca existe justamente por constituir um conjunto que dificilmente se formaria novamente”, diz Plínio Martins Filho, da Editora Universidade de São Paulo (Edusp).
“A ideia é que a biblioteca não se pulverize, não se espalhe e que, ao menos num período de 100 anos, não seja privatizada”, explica Sérgio, filho de Mindlin.
(Sérgio Mindlin)
Foram necessários 3 anos para que a USP construísse o prédio que abrigaria o acervo. “A gente passa e os livros ficam. Para serem conservados e mais utilizados, uma biblioteca precisa ter uma dimensão institucional”, diz Mindlin.
Que pensa no tempo de que ainda dispõe para o convívio íntimo com seus livros: “Porque quando eles saírem será meio traumático, tenho que assumir”, admite, com uma pontinha de angústia.
Mindlin chegou, inclusive, a fazer um cálculo de quanto tempo precisaria para ler todos os seus títulos: 300 anos. “Mas não consegui achar a fórmula para viver tanto. Então resolvi me contentar com o tempo de que eu disponho, que eu não se qual é, mas que, enquanto durar, eu vou aproveitando”, diz, sorrindo.
É esta, enfim, sua loucura mansa.“Uma certa obsessão em ler e reunir livros. Um pouco patológica, mas é mansa porque não faz mal a ninguém e me faz sentir bem”.
Mas nosso querido Mindlin, não é eterno e também se foi em 28 de fevereiro de 2010, mas nunca esqueceremos o esforço maravilhoso deste brasileiro que decidiu perpetuar a literatura e o amor pelos livros. Sua lição não será esquecida, amigo dos livros...!
Referências Bibliográficas
Não faço Nada sem Alegria – A Biblioteca Indisciplinada de Guita e José Mindlin, São Paulo, Museu Lasar Sagal/José Mindlin, Editor, de Tereza Kikuchi (org.), São Paulo, Edusp.
Uma Vida entre Livros – Reencontros com o Tempo, de José Mindlin, São Paulo, Edusp/Companhia das Letras.
Memórias Esparsas de uma Biblioteca – Entrevista a Cleber Teixeira e Dorothée de Bruchard, São Paulo, Escritório do Livro e Imprensa Oficial.
FIM.:.