Em movimentos ágeis a mão desliza sobre o papel, que absorve a tinta. As pinceladas são únicas, sem retoques. É assim, em poucos minutos que nasce uma pintura sumi-ê, uma técnica chinesa que chegou ao Japão no século 14 e de lá se espalhou pelo mundo.
Sua principal característica é mesmo a rapidez. O artista sabe que o trabalho deve ser único, espontâneo, sem hesitação, pois qualquer tentativa de corrigir o desenho vai resultar num borrão.
Se não ficou bom, lixo. Por essa razão, a pintura sumi-ê está muito ligada à meditação, é preciso estar "inteiro", totalmente concentrado na atividade, para deixar o braço deslizar sobre a folha e refletir os sentimentos do autor naquele exato momento.
Como se pode ver pelas imagens que ilustram a matéria, não há perspectiva nem claro-escuro. É muito mais um croqui, um esboço, uma espécie de caricatura. Em vez de formas perfeitas, são figuras subjetivas que nos obrigam a buscar na memória os "pedaços" que faltam para completá-las.
Na China, os desenhos têm muita cor e ocupam quase todo o papel. No Japão, é muito mais simples, porque assim é considerado mais nobre.
É também por uma questão de etmologia. Sumi, em japonês, quer dizer tinta preta. Ê é desenho, pintura. Até o início do século passado, o sumi-ê era só preto no branco mesmo. Mais recentemente, as tintas coloridas (gansai), sempre em tons suaves, passaram a ser aceitas pelos mestres nipônicos - agora, aliás, elas estão na moda, mas só para pontuar detalhes ou compor um pedaço do fundo.
O que realmente importa é valorizar os espaços vazios. você não pode invadir o branco porque essa é uma pintura que honra o silêncio e a ausência de cor. São os espaços não pintados que dão vida á cena.
Rita Böhn, que viveu em São Paulo durante 25 anos, entre as décadas de 70 e 90, e praticante do zen-budismo (ensinamento filosófico e religioso que tem por objetivo alcançar o vazio total e deixar aparecer o verdadeiro espírito), ela foi aluna do mestre japonês Massao Okinaka, o primeiro a trazer essa técnica de pintura para o Brasil, em 1932.
E encontrou grandes semelhanças entre as duas práticas. Os praticantes do zen procuram libertar a mente dos fatos coitidianos por meio de exercícios de meditação - a mesma busca pelo desprendimento, pelo vazio, que orienta os desenhos. No papel, esses princípios estéticos e filosóficos se traduzem em assimetria, singeleza, naturalidade, profundidade, desapego, quietude e serenidade interior.
Mas como alcançar tantas coisas boas? Como (quase) tudo na vida, esse caminho requer dedicação e treino.
Primeiro, é essencial aprender a dominar os materiais. O pincel deve ser jáponês e feito com pêlos de animais (o mesmo usado pela caligrafia). A tinta é feita à base de carvão e cola e precisa ser diluída em água.
No Japão, muitos preferem ao papel de arroz. Aqui, o melhor é o papel-filtro, encontrado em laboratórios químicos, justamente para absorver instantaneamente a água e não deixá-la se espalhar, como na pintura de aquarela.
Depois, vem a técnica. No começo, a base é copiar, como em diversos processos orientais. O mestre faz e o aluno reproduz. A ideia é fazer o mesmo traço tantas vezes até ele passar a ser seu.
O "alfabeto" do sumi-ê (linha fina, chia, curta, longa, só um pontinho) está todo contido em quatro figuras básicas: orquídea selvagem, bambu, ameixeira e crisântemo.
As figuras representam as quatro estações e expressam, por suas características, valores como humildade, integridade, firmeza e lealdade, entre outros.
Depois de executá-las à exustão, você está apto a desenhar qualquer outra coisa.
Percebe-se que é preciso ter muita concentração e disciplina. Sem nunca ter estudado, não dá para acordar e dizer: hoje vou fazer uns sumi-ês. Assim como a maioria das práticas orientais, esta também exige não só dedicação, mas integração, porque existe um objetivo maior: no caso, expressar a espiritualidade humana.
Só depois de muito treino é que vem o toque, a alma. Na hora de criar um sumi-ê, deve-se estar só, em silêncio ou com música bem tranquila. O que motiva o pintor é o prazer do resultado tão belo.
O maior benefício do sumi-ê é nos trazer para o agora. Ele tira as ansiedades e preocupações. Só fica o traço. E uma dúvida: você usa a tinta ou ela usa seu corpo para se expressar?
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