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Na Cadência dos Deuses - Parte 2


Na Antiguidade clássica, igualmente, o ato de dançar fazia parte dos rituais. Os gregos acreditavam firmemente no poder das danças mágicas e em numerosas ocasiões realizavam-nas em honra dos habitantes do Olimpo. O próprio mito da criação do povo helênico é contado como uma dança realizada por Gaia, a deusa da Terra.

Envolta em alvos mantos, as vestais rodopiavam como um redemoinho dentro do nada e, conforme iam se tornando visíveis, seus corpos se transformavam em montanhas e velas e seus braços davam origem ao Firmamento, ao qual Gaia dava o nome de Ouranos. De sua união com ele nasceram todas as criaturas, incluindo deuses e seres humanos. 


Na verdade, essa ideia de uma dança da Criação é recorrente no imaginário de todo o planeta. O célebre mito indiano da dança de Shiva conta a história dessa deusa, que envia ondas sonoras à matéra despertando-a de sua letargia. A matéria, então, ganha vida e passa a mover-se ao redor de Shiva.


Os indianos ainda mantêm essa concepção do movimento corporal como um elo com o outro mundo. A própria dança clássica do país nasceu dentro dos templos e durante séculos esteve ligada a práticas ascéticas, sendo vista como uma verdadeira disciplina espiritual.

Atualmente ganhou palcos e escolas do mundo todo, inclusivr do Brasil e seus praticantes narram histórias mitológicas hindus por meio do rico gestual simbólico que a caracteriza.


Sagrada e Profana

No Ocidente, contudo, a dança não teve a mesma sorte dentro dos templos. Aos poucos seus diferentes elementos emanciparam-se, tornando-se atividades e artes separadas, como jogos, exercícios físicos, teatro e religião.

Assim a partir do momento em que se transformou numa forma de espetáculo, deixando de ser realizada para as divindades e colocando-se a serviço do homem, começou a perder sua aura sacra.


Já na roma antiga era considerada profana pelas camadas dominantes, o que levou Cícero, célebre orador do império de Julio Cesar, a declarar: "Nemo fere saltata sobrius" (O homem sóbrio não dança).

Com a expansão do Cristianismo, este processo de dessacralização dos movimentos corporais tornou-se ainda mais agudo, e as danças populares renegadas pela Igreja, que via nelas uma demonstração de paganismo e libidinagem.


A dança teve destino idêntico dentro dos outros credos monoteístas. No Islã, por exemplo, crê-se que ela afastaria o homem do Criador.

Entretanto, apesar da perseguição, diversas manifestações populares corporais acabaram sendo integradas ao contexto religioso, como no caso das procissões e festas cristãs que eram acompanhadas de dança.

Na Espanha, por exemplo, em determinadas ocasiões, dançava-se dentro das próprias igrejas, costume não completamente extinto até hoje.


No Brasil, muitas tradições dançantes, como o maracatu e o reisado, são oriundas de festas religiosas.

Nas danças populares basileiras o Sagrado e o profano convivem harmoniosamente. A separação não é feita pelos brincantes que participam dos festejos, mas sim dos de fora. O que faz da dança um elo com o Divino é a intenção que se coloca nela.


Todo o trabalho corporal que leva em conta a sensibilidade e a autodescoberta, e não apenas o plano estético, torna-se um movimento que leva a uma transcendência. Nesse sentido podemos falar de uma conexão com o Sagrado, não enquanto crença estruturada, mas como início de uma ligação do homem com a Terra, com o espaço e com o cosmos.

Mesmo alguns seguidores do Corão crêem na existência de movimentos corporais que, quando conjugados com uma profunda disciplina espiritual, são capazes de nos lembrar da presença amorosa do Criador.


Os dervixes - adeptos do Sufismo, vetente mística do Islã - praticam o Sama, um giro ritual acompanhado de música que busca a ampliação da consciência e a conexão com Allah.

O Sama, na verdade, é uma oração em movimento. Enquanto gira, o fiel recita interiormente palavras sagradas, o que permite que ele alcance níveis cada vez mais elevados de consciência.

Condenada por uns, defendida por outros - o filósofo alemão Nietzsche chegou a afirmar: "Não acredito em um Deus que não saiba dançar." - o fato é que desde os primórdios a dança acompanha os passos do homem em sua jornada espiritual.

Independentemente da crença, do salto, do ritmo, por meio da expressão corporal o homem descobriu em seu corpo uma chave para acessar os segredos guardados pelos deuses. E percebeu que tem o privilégio de estar em sintonia com a cadência divina, tal qual descrevem as palavras escritas no século 13 pelo poeta sufi Rûmi, criador do Sama:

"Oh! Dia, levata-te (...)
Os átomos dançam,
as almas, arrebatadas de êxtase dançam,
a abóbada celeste, a causa desse ser, dança.
Te direi ao ouvido até onde conduz esta dança:
todos os átomos que existem no ar e no deserto
estão enamorados como nós,
e cada um deles,
feliz ou desaventurado,
se encontra deslumbrado pelo sol da alma incondicional".

Fim .:.



Referências Bibliográficas

Livros

A Dança, de Mirian Garcia Mendes, ed. Ática, 1987.
Mitos e Símbolos na Arte e Civilização na Índia, de Heinrich Zimmer, ed. Madras, 2000.
Educação Indígena e Alfabetização, de Bartolomeu Meliá, ed. Martins Fontes, 2002.
Sacred Dance - Encounter With Gods, de Maria Gabriele Wosien, ed. Thames and Hudson, 1968.

Sites

Dança Indiana - www.odissi.com.br
Dervixes - www.halvetijerrahi.org.br/jerrahi/




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Aranel Ithil Dior